Principais achados

 

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Há conhecimento da Lei no 10.639/2003 e afirma-se a importância de estudar a história e a cultura afro-brasileira e africana na escola

Na escola existe variedade de materiais didáticos que abordam as questões étnico-raciais

Há vontade de aprender história e cultura afro-brasileira e africana entre alunos, os quais apresentam diversificado elenco de temas de interesse

Predomina na escola um “discurso da igualdade” que encobre a existência das diferenças e alimenta o mito da democracia racial

Há percepções diferenciadas sobre a existência do racismo entre os diversos atores da comunidade escolar

Crianças de 5 e 6 anos espelham referenciais e estereótipos presentes no universo adulto

Dados de diferente acesso e permanência de pessoas negras no sistema educacional são explicados preponderantemente com base em fatores socioeconômicos

Há  conhecimento da Lei no 10.639/2003  e afirma-se a importância de estudar a história e a cultura afro-brasileira e africana na escola 

            Nas escolas pesquisadas por esta consulta há um conhecimento da Lei n o 10.639/2003 bastante disseminado entre a equipe pedagógica (professores, diretores e coordenadores pedagógicos), uma vez que 70% dizem conhecer a lei e 22%, já ter ouvido falar sobre ela. Isso significa que, independentemente da existência ou não de críticas no que se refere à inclusão da temática da história e da cultura afro-brasileira e africana no currículo oficial, a obrigatoriedade que, como já citado, altera a LDB impulsionou o debate sobre sua existência. Em compasso com o conhecimento da existência do dispositivo, a maioria dos profissionais da equipe pedagógica (96%) afirma a importância de estudar a história e a cultura afro-brasileira e africana na escola. Atribuem essa importância aos fatores que serão verificados nas próximas páginas. 


            O conjunto de justificativas dadas para a importância de estudar a história e a cultura afro-brasileira e africana é bastante interessante e promissor e pode traduzir um anseio por valorizar esse conhecimento e essa cultura para a compreensão do Brasil. Chama a atenção que 16% citaram aspectos relativos à reeducação das relações raciais, um dos componentes básicos das diretrizes. Aceitação semelhante sobre a temática está presente entre 98% dos alunos da 4 a e da 8 a séries, os quais também afirmam que gostariam de aprender sobre a história e a cultura afro-brasileira e africana.

              
    

Desassociar o negro de pobreza e es-cravidão e entender sua importância. importante para a sociedade brasileira se conhecer melhor; a história precisa ser resgatada para que nossos alunos se reconheçam enquanto sujeitos históricos.

    
              


            O conhecimento da existência da lei, bem como a importância atribuída à aprendizagem da história e cultura afro-brasileira e africana, são sinais muito positivos, ainda que por si sós não assegurem a efetiva implementação da lei na prática. 

            Outra dimensão considerada estratégica para a implementação da lei diz respeito à produção e à distribuição de material didático voltado à diversidade racial e cultural na escola, adequando-se à perspectiva que assinala as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”.  

Vejamos a seguir o que se pode apreender sobre a questão com a consulta. 

Na escola existe variedade de materiais didáticos que abordam as questões étnico-raciais 

            A consulta mostra que há variedade de materiais didáticos que abordam a história e a cultura afro-brasileira e africana, bem como a questão racial, entre os quais livros de literatura infanto-juvenil disponíveis para a comunidade escolar. 

            A consulta revela ainda que 80% dos professores, coordenadores pedagógicos e diretores reconhecem tais materiais didáticos. O Gráfico 2 apresenta os materiais mencionados por esses sujeitos.


            Pode-se aferir que entre os alunos da 4 a e 8 a séries 69% reconheceram a existência de materiais sobre cultura africana e afro-brasileira na escola, com larga vantagem dos livros, vídeos e músicas, como apresentado no Gráfico. 


            Tanto os profissionais da equipe pedagógica como os alunos citam haver variedade de materiais pedagógicos, e a equipe pedagógica destaca os materiais impressos, mencionando ou fazendo referência a materiais elaborados por organizações governamentais e não-governamentais. Além da equipe pedagógica e dos alunos, e mais especificamente no campo dos livros, 83% das pessoas responsáveis pelas bibliotecas também reconhecem a variedade de títulos, na categoria classificada como infanto-juvenil, à disposição da escola, como revela o Gráfico 4.



            Ainda que não apresentem o mesmo repertório que as bibliotecárias entrevistadas, 76% dos professores, diretores e coordenadores pedagógicos afirmaram a existência de livros infanto-juvenis em suas respectivas escolas, citando espontaneamente os seguintes títulos em ordem decrescente: Menina bonita do laço de fita (de Ana Maria Machado), As tranças de Bintou (de Anna Sylviane Diouf), Pretinha, eu? (de Júlio Emílio Braz), Luana (de Haroldo Machado), Lendas e contos africanos e Tanto, tanto! (de Trish Cooke), A bonequinha preta (de Alaíde Lisboa de Oliveira) e Histórias da preta (de Heloisa Pires). Assinala-se que Menina bonita do laço de fita é uma obra bastante lembrada tanto pela equipe pedagógica como pelas bibliotecárias.  

            É importante mencionar que análises têm apontado que a abordagem do material promove o paradigma do mito da democracia racial, pois, ao fazer a apologia da miscigenação, tende a minimizar a existência do conflito racial. De todo modo, é bastante promissora a citação espontânea de número bastante elevado de títulos de literatura, o que pode sinalizar que, com a ampliação da oferta de títulos sobre a história e a cultura afro-brasileira e africana por parte do poder público, as escolas podem se apropriar desse repertório, uma vez que o livro é bastante valorizado.

            A equipe pedagógica também respondeu, por meio de cartão impresso, se havia em sua escola os seguintes títulos: Alfabeto negro (de Cristina Agostinho e Rosa Margarida C. Rocha), Almanaque pedagógico afro-brasileiro (de Rosa Margarida C. Rocha), A África está em nós (de Roberto Emerson C. Benjamin), Bonecas negras, cadê? – O negro no currículo escolar (de Maria Zilá Teixeira de Matos) e Ilê Ifé, o sonho do Iaô Afonjá – Mitos afro-brasileiros (de Vanda Machado e Carlos Petrovich), que fazem parte de catálogo bibliográfico e de um conjunto de livros que abordam as questões étnico-raciais, distribuídos nas três cidades como indicação de leitura e dinamização na escola. 

            Do total de entrevistados, 39% responderam afirmativamente, 51% disseram que não existem e outros 10% que não sabiam ou se recusaram a responder. A cidade de Belo horizonte foi a que apresentou o maior índice de respostas afirmativas em relação à existência da bibliografia citada, e São Paulo, a que apresentou menor índice de respostas afirmativas (73% em Belo  Horizonte, 28% em Salvador e 18% em São Paulo). Também foi em São Paulo que maior número de professores afirmaram desconhecer a existência dessa bibliografia na escola em que lecionam (66%) e o único lugar em que houve professores que não se lembraram da existência ou não na escola desses livros indicados (14%).

            No que se refere aos materiais audiovisuais, também é bastante diversifi-cado o repertório apresentado pela equipe pedagógica. Foram citados vídeos institucionais, e os mais citados foram os vídeos do programa “A cor da cultura” e o “Vista minha pele”, do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e da Desigualdade (Ceert). Contudo, a categoria mais citada foi a de filmes comerciais, entre os quais foram nomeados, em ordem decres-cente: Kirikou e a feiticeira, Duelo de titãs, Homens de honra, Meu nome é Rádio, Zumbi dos Palmares, A origem do homem e Mississipi em chamas.

            Observa-se que a maior parte dos vdeos, comerciais ou no, circulam h tempos em cursos e oficinas promovidos por instituies do movimento social negro e, com mais intensidade nos ltimos cinco anos, nos programas, proje-tos e formaes continuadas sob responsabilidade de secretarias ou ncleos especficos criados nas administraes. Nas escolas, ao lado da produo e da distribuio de materiais, a formao continuada tem sido apontada como ele-mento fundamental para a implementao da Lei n o 10.639/2003.

            Nesse sentido, além do reconhecimento da existência de materiais didáti-cos e em particular de literatura infanto-juvenil na escola, a consulta pôde verificar que a formação da equipe pedagógica tem sido fomentada, já que 59% das equipes pedagógicas afirmam ter participado de curso ou formação que abordasse as questões étnico-raciais. No entanto, a Tabela 3 mostra que a formação tem sido dirigida mais a diretores e a coordenadores pedagógi-cos que a professores.


            Parece-nos que a atenção dada à produção de materiais didático-pedagógicos e à formação de trabalhadores da educação é um acerto respeitável e importante, pois são suportes e processos privilegiados para o entendimento de como o racismo afeta de forma direta e indireta a população brasileira, propiciam discussões necessárias à desconstrução de um conjunto de conceitos em prol da construção de novos que fomentem a reeducação das relações raciais. 

            Contudo, ainda que boa parte da equipe pedagógica e dos bibliotecários identifique a existência de um significativo repertório de livros que abordam as relações étnico-raciais e, portanto, apresentam personagens negros, apenas 43% dos alunos da 4a série têm lembrança de personagens negros e, entre estes, o elenco apontado é restrito. Os personagens mais citados por alunos foram, em ordem decrescente: Zumbi dos Palmares, Luana/ Luana Ginga da Rainha, Pivete, senhor Barnabé, Gibi Césinho, Saci, João e Ronaldinho.

            A questão não foi aplicada a alunos da 8a série. Apesar da ampliação da oferta e da existência de materiais, reconhecidos por alunos, professores e funcionários, bem como o fomento à formação continuada, a consulta mostra que esses insumos e processos ainda não causam impacto significativo no cotidiano escolar e o universo dos alunos no que se refere ao contato com situações e personagens que contribuam para o redimensionamento da história e da cultura afro-brasileira e africana que, como já citado,gostariam de aprender.


Há  vontade de aprender história e cultura afro-brasileira e africana entre alunos, os quais apresentam diversificado elenco de temas de interesse 

            Alunos da 4a e 8a séries mostram expressiva lucidez e capacidade de verbalização ao responderem o que gostariam de aprender da história e da cultura afro-brasileira e africana, trazendo questões importantes e abordagens interessantes que até mesmo extrapolam as dimensões de história e cultura, conforme mostra o Gráfico 5.


            Frases das crianças a respeito do que gostariam de aprender na escola sobre a história e a cultura africana As crianças têm desejo de conhecer mais o cotidiano dos africanos...

     
    

Como vivem, onde moram, onde dormem, como são suas casas...

Como são as crianças e como a escola.

    
              

... suas formas de sobreviver...

              
    

Gostaria de aprender como se protegem, como se sustentam e como cuidam dos mortos.

    
              


... além de compreender as relações sociais que estruturaram o processo de escravização e deram base ao racismo.

              
    

Por que foram escravizados? Como os negros viviam sendo escravos? Por que os por-tugueses escravizaram?

Por que os brancos no gostavam dos negros? Por que os negros no eram tratados como os brancos?

    
              

            O leque de interesses apresentado pelos alunos parece atestar que os conteúdos apresentados pela escola ainda não atendem às suas necessidades para ampliação do conhecimento sobre o tema. Eles solicitam conteúdos que problematizam o imaginário e as referências estabelecidos pelo racismo sobre a representação social e cultural do negro. Fazem solicitações que demonstram a necessidade de elementos básicos para reconceituar o homem/sujeito negro. 

            Indicam ainda não conhecer esse sujeito histórico negro/africano, querendo saber onde moram e dormem e como são suas casas. Os alunos querem também saber se na África há ônibus e automóvel, indicando ainda que a África é um país sem desenvolvimento e sem bens culturais. É interessante observar que, quando foi perguntado aos alunos quais os conteúdos de história e da cultura afro-brasileira e africana que aprendem na escola, a questão da escravização dos africanos apareceu como a mais lembrada. Já quando perguntamos o que eles querem aprender, a escravidão passa a ser o terceiro tema mais citado, o que sugere que os conhecimentos construídos na escola ainda estão focados apenas nesse aspecto. Além disso, a abordagem em que se mostram interessados é menos informativa e mais relacional, querem compreender as implicações, as causas e os efeitos do processo de escravização, dando uma sinalização importante às escolas de como apresentar a questão em sala de aula. É importante observar essas lacunas relevantes para a efetiva implementação da Lei n o 10.639/2003.

Apesar das perspectivas promissoras apontadas, há muitos desafios.

Predomina na escola um “discurso da igualdade” que encobre a existência das diferenças e alimenta o mito da democracia racial 

            A consulta perguntou aos professores, diretores e coordenadores pedagógicos se concordavam ou discordavam do título do livro Na minha escola, todo mundo é igual, de Rossana Ramos e Priscila Sanson. A intenção da consulta era ouvir qual era a percepção de igualdade e de diferença que prevalece na comunidade escolar, uma vez que essa percepção é chave para o debate em torno da implementação da Lei n o 10.639/2003. Ainda que 51% tenham discordado e 43%, concordado com o título do livro, quando analisamos a justificativa dada por cada um desses dois grandes grupos podemos perceber que muitos dos que dizem discordar sustentam a afirmação de que “somos todos iguais”.

            Dessa forma, do total de professores, diretores e coordenadores consultados, apenas 40% se baseiam no reconhecimento da singularidade dos seres humanos. É interessante que em alguns casos a menção à diferença chega a ser entendida como ofensiva, como no caso de quem afirma: “Não gosto desse tipo de coisa. Todo mundo é igual, parece que você está enfatizando as diferenças”. Outra pergunta feita aos atores abordava o que consideravam necessário para que brancos e negros convivessem melhor na escola. A resposta que aparece sempre em destaque diz respeito à necessidade de enfatizar que “somos todos iguais”. Entre os funcionários, 46% enfatizam o discurso da igualdade; entre os pais, 35%; e entre os alunos, 19% (ver Gráficos 6, 7 e 8). 





            O discurso da igualdade se manifestou também em pronunciamentos isolados ao longo das entrevistas, quando os entrevistados discursavam livre-mente, comentando ou exemplificando algum argumento. Em um desses momentos, uma professora ilustrou seu argumento sobre a igualdade mostrando a palma da mão, aludindo ao fato de que todas as palmas são brancas. Essa percepção revela a importância de reconhecer e frisar a diferença como sendo relacional e horizontal, entre os indivíduos singulares, não tendo um ponto de referência a partir do qual o “resto” é diferente e, por isso, inferior.

            A constatação recorrente do discurso da igualdade nos leva a pensar de que maneira construímos o nosso discurso sobre essa temática. O que a consulta suscita é a compreensão de que localizar a igualdade como ponto de partida de fato dificulta ou até mesmo impede o reconhecimento da diferença. Por outro lado, pautar a diferença como ponto de partida sem hierarquizar e inferiorizar ou desvalorizar é reconhecer a singularidade dos seres humanos, a pluralidade como imprescindível para que possa se efetivar a condição de igualdade nas relações – igualdade de direitos –, o ponto de chegada de processos socialmente conquistados. 

Há  percepções diferenciadas sobre a existência do racismo entre os diversos atores da comunidade escolar 

           A consulta perguntou a todos os atores da comunidade escolar, com base em questões diferentes, qual era a percepção deles sobre a ocorrência de discriminação racial na escola. Como aponta a Tabela 4, a equipe pedagógica (professores, coordenadores pedagógicos e diretores), bem como os alunos da 8 a série, são os que mais reconhecem a existência de discriminação racial na escola. Essa percepção cai entre os alunos da 4 a série, funcionários, e mais ainda entre os pais, mães e responsáveis. Com relação a estes, a diferença de percepção chama muito a atenção, uma vez que indica a existência de um distanciamento entre o universo escolar e o núcleo familiar. O que a consulta sugere é que a vivência sobre a discriminação racial sentida ou exercida na escola não é compartilhada em casa. Em Salvador, de maneira espantosa, 100% das mães e responsáveis dizem que seu filho não viveu ou presenciou discriminação racial, enquanto 62% dos alunos dizem ter vivido ou visto casos de discriminação racial nessa cidade. 


            A questão foi aprofundada na equipe pedagógica quando a consulta apresentou uma situação hipotética de discriminação racial em que um aluno xingava outro colega negro de “macaco”. A consulta quis saber o que pensavam de tal situação. Ainda que 50% reconheçam o caso como manifestação de racismo, preconceito ou discriminação, 24% das explicações pelo ocorrido tendem a invisibilizar ou suavizar o conflito. Dizem, por exemplo, que “a criança, no meio de outras, não discrimina”, ou “vindo da criança, a gente não pode dar uma ênfase muito grande porque eles usam qualquer nome para ofender”. Uma porcentagem pequena (4%) culpa o menino negro (ver Gráfico 9).

            A consulta também perguntou o que a equipe pedagógica faria diante de tal situação. Nesse caso, a grande maioria diz que conversaria com os alunos, muitos o fariam individualmente; outros, coletivamente. De todo modo, 42% problematizariam a questão explicitando o conflito, o que nos pareceu um resultado promissor. Uma porcentagem menor (16%) neutralizaria o conflito ou daria explicações apoiadas na biologia, de que “todos somos seres humanos”, “o sangue de todos é igual” ou “o homem vem do macaco”. Uma pequena porcentagem (3%) ofereceu um encaminhamento exemplar, dizendo que tomaria atitudes que valorizam a cultura africana.


            Ainda que não tenha sido resposta majoritária, a porcentagem bastante  elevada de profissionais que escolheram o caminho da invisibilização do conflito merece destaque. A reflexão que suscita é a diferenciação entre intenção e ação, e o que gera significado é esta última, ou seja, ainda que atos de discriminação racial sejam neutralizados com base no discurso da “não-intenção”, é fundamental enfatizar que é a ação em si que gera significado, acarreta conseqüências concretas, objetivas e subjetivas. 

Crianças de 5 e 6 anos espelham referenciais e estereótipos presentes no universo adulto

            A consulta pôde perceber questões merecedoras de atenção no que diz respeito às crianças de 5 e 6 anos da educação infantil. A primeira se refere à questão do interdito ao termo “negro” e as variadas formas de denominar a pessoa negra. Durante a primeira dinâmica, por exemplo, ao serem convidadas a contar a história à medida que as pesquisadoras iam passando as páginas do livro A cor da vida, as crianças usavam diversas expressões para falar das pessoas negras: preta, pretinha, negra, negrinha, morena e marrom. Além disso, nas três cidades em que foi aplicada a consulta, afirmou-se em diferentes contextos ser incorreto usar o termo “negro” ou “preto”, e crianças ou mesmo professores intervinham afirmando o termo “moreno” como sendo o correto: “Não é negrinha, é morena que fala, e o menino é branco, cor de pele”.

            A diversidade de denominações para descrever as pessoas negras está relacionada à dificuldade que a sociedade brasileira, de forma geral, tem para encarar a temática étnico-racial, e as crianças pequenas são também informadas por esse universo de representações sobre o tema. Podemos atribuir essas dificuldades a alguns fatores já mencionados anteriormente: o processo de miscigenação e tentativa de branqueamento da sociedade e a forma peculiar de estabelecimento das relações raciais no Brasil, fruto das ambigüidades em torno da temática da não-aceitação do racismo, do “preconceito de ter preconceito”, do mito da democracia racial. A palavra “negro”, durante muito tempo, foi, e ainda é, entendida como ofensiva, ainda que a partir do final da década de 1970 os movimentos sociais negros tenham retomado a identidade afro-brasileira, ressignificando positivamente as denominações raça negra, negro e população negra. Semelhantemente, a descrição do branco como “cor de pele” na citação anterior aponta para o branco e sua cor de pele como o padrão, a norma, o referencial com base no qual os demais são semelhantes ou diferentes. 

            A segunda questão que merece atenção é a expressão de juízo de valores quando as crianças se referiam aos diversos personagens presentes no livro. Em diversas situações, nos três municípios, surgem falas como: “Eu acho essa menina preta feia. Eu acho esse aqui [branco] bonito”, e até mesmo uma intervenção de uma criança branca a uma pesquisadora negra sugerindo que ela deveria cortar suas tranças e tingir seu cabelo de loiro. Podemos situar essas falas no contexto dos ideais de beleza, humanidade e capacidade que, em nossa sociedade, ainda estão associados aos valores de matriz européia. Ao longo das dinâmicas com as crianças surgem situações que podem ser interpretadas mais pelos gestos do que pelas palavras, em que alguns constrangimentos são visíveis. Por exemplo, em determinada situação a consulta perguntou se as crianças achavam que havia alguém do grupo que se parecia com os personagens do livro. Ao responderem afirmativamente, porque uma das crianças do grupo era negra, esta ficou calada e cobriu o rosto com as mãos, expressando desconforto. Nesse caso, a criança negra, possivelmente informada por um condicionamento socio-cultural de um ideal de beleza, pode ter incentivada sua baixa auto-estima.

           A forma como uma criança se sente em relação a si mesma no decorrer do seu desenvolvimento é determinada em grande parte pelas primeiras mensagens que ela recebe de seus pais e da microssociedade que a cerca. Outra dinâmica com as crianças pequenas indagou direta-mente se elas conheciam alguém que não quis ser amiga da outra por causa da cor. Algumas afirmaram que sim, como o caso de um menino negro que disse: “Meu irmão é branco e não gosta da minha cor”. Ou como no caso de outra criança negra que disse: “... ela não quis brincar mais comigo, eu fiquei de mal e não brinquei mais com ela. Aí fiquei triste”.

            Apesar de essas respostas não terem sido numericamente elevadas, a consulta faz um alerta aos adultos, sejam eles da escola, da família ou da sociedade em geral, lembrando o que Nilma Lino Gomes (1995) afirma: “Podemos considerar que os primeiros julgamentos raciais apresentados pelas crianças são frutos do seu contato com o mundo adulto. As atitudes raciais de caráter negativo podem, ainda, ganhar mais força na medida em que a criança vai convivendo em um mundo que a coloca constantemente ante a estereotipação do negro, do índio, da mulher e do pobre”.

            Por fim, uma última questão que merece destaque diz respeito ao repertório das crianças sobre a África. Com exceção das crianças de Salvador, que apontaram as cores da unidade africana, sua localização no globo, e mencionaram o tráfico de escravos, a maioria associou a África a bichos como elefante, girafa, tigre, leão, macaco, apontando uma introjeção dos estereótipos sobre o país. Algumas disseram que não sabiam nada, e outra respondeu: “Eu já tomei isso”, sugerindo que África poderia ser uma bebida ou um remédio.

            Mais uma vez a consulta traz um alerta à equipe pedagógica da escola, bem como aos responsáveis pela definição de políticas públicas: é de grande importância ampliar e aprofundar o universo e o repertório sobre a África também entre as crianças pequenas.

              
    

Essa camisa sua é da África porque tem verde, amarelo, preto e vermelho.

(Deivison, 5 anos, Salvador)

    
              

Dados de diferente acesso e permanência de pessoas negras no sistema educacional são explicados preponderantemente com base em fatores socioeconômicos 

A consulta quis saber da equipe pedagógica da escola a que atribuíam as diferenças de acesso e permanência, bem como o sucesso escolar das pessoas negras do sistema educacional brasileiro. Após apresentar as informações do quadro 1, foram obtidas as seguintes respostas: 


            Praticamente dois terços da equipe pedagógica apontam a explicação para a situação com foco na desigualdade social com referência à situação de classe, e um número muito menor atribui essa realidade a aspectos históricos, ao racismo, ao mito da democracia racial ou aos efeitos do preconceito racial. Chama a atenção que 9% chegam a culpar os negros por essa situação, afirmando, por exemplo, que “os negros são mais preconceituosos que os brancos, eles mesmos se sentem inferiores e derrotados”.

            ;Esse resultado espelha a polmica acerca da situao do negro no Brasil. Parte da produo terica elege a categoria classe como categoria analtica, alegando que a partir dela se explica o racismo e as discriminaes. Outra parte, a mais recente e ainda minoritria, e muito a cargo dos pesquisadores negros, tem na raa a categoria central de anlise para o estudo das implicaes sociais, econmicas e culturais do negro brasileiro, mantendo a sua articulao com a classe social.

            Em artigo publicado em jornal de grande circulação de São Paulo em agosto de 2006, Boaventura de Souza Santos aborda a questão criticando a democracia brasileira, a qual classifica como hipócrita, e afirma: “O máximo de consciência possível desta democracia hipócrita é diluir a discriminação racial na discriminação social. Admite que os negros e os indígenas são discriminados porque são pobres para não ter de admitir que eles são pobres porque são negros e indígenas. É, pois, uma democracia de muito baixa intensidade”.

            Nota-se que, entre os profissionais da equipe pedagógica, são os diretores que apresentam uma visão mais crítica e trazem maior porcentagem de discriminação racial e o mito da democracia racial como explicação para a situação das diferenças nas trajetórias escolares de negros e brancos. 

 

Veja mais:

Concepção

Metodologia

Universo consultado

Caracterização geral dos atores consultados

Tabelas e gráficos

Instrumentos da pesquisa

Escolas consultadas

Recomendações

Perspectivas e desafios