Conhecendo as nossas recomendações
O processo de desenvolvimento e de análise desta consulta foi, para nós que a promovemos, um desafio e uma fonte de significativas aprendizagens. Temos, dessa forma, uma série de recomendações a fazer, algumas mais gerais e outras dirigidas a instâncias específicas.
Queremos dar destaque a quatro recomendações. Em primeiro, para fazer frente ao mito da democracia racial, cuja persistência foi constatada por essa consulta, é de fundamental importância reconhecer o racismo que ainda permeia nossa sociedade e, conseqüentemente, nossas escolas, e pautá-lo sem receios de enfrentar as tensões.
A resolução não-violenta de conflitos, princípio fundador de democracias abertas e plurais, pressupõe primeiro a explicitação destes conflitos, a possibilidade de, a partir do diálogo e do debate, resolvê-los de fato.
Há um aparente temor do processo de reconhecimento e de explicitação de conflitos, uma forte tendência a preferir o caminho de aparentes consensos, supostamente mais fáceis de serem abordados. No entanto, o não-reconhecimento do conflito impede sua efetiva resolução, e este segue presente, apesar de mudanças de lugares e de formas, consolidando-se.
A escola tem um papel central no processo de reeducação das relações étnico-raciais, e, portanto, precisa assumir seu papel transformador, pautando sistematicamente questões conflituosas e inegavelmente de difícil abordagem, promovendo junto à sua comunidade escolar o caminho do diálogo e do debate aberto e plural.
A esta recomendação acrescentamos outra, intimamente relacionada à primeira. A consulta constatou uma forte presença entre todos os atores do que viemos a chamar de “discurso da igualdade”. Esse discurso, ao aclamar a igualdade como ponto de partida, vem, de fato, negar a diferença. E, negando a diferença, impossibilita-se a consolidação da igualdade nas relações, sejam elas étnico-raciais ou outras. Se a busca de igualdade nas relações pressupõe necessariamente o reconhecimento da diferença, nossa segunda recomendação geral, é que todos nós possamos refletir sobre esta questão e debatê-la profundamente.
Ao salientarmos o princípio da igualdade, é de fundamental importância explicitar que a igualdade que invocamos é o ponto de chegada, pressupondo necessariamente o reconhecimento da diferença como ponto de partida. O reconhecimento da diferença, da pluralidade, é o princípio básico da democracia, e a igualdade que almejamos é fruto deste reconhecimento, conquistado na luta política que travamos na busca de conquistas e pela efetivação dos direitos de todas as pessoas.
É nesse contexto que afirmamos a eqüidade como estratégia de busca da igualdade a partir do reconhecimento das diferenças e a importância de políticas de eqüidade para a concretização da igualdade.
Nossa terceira recomendação, dirigida aos órgãos executivos nas três instâncias de governo e aos seus respectivos conselhos de educação, é que a implementação das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” se dirija também para a Educação Infantil, etapa menos contemplada. A reeducação das relações étnico-raciais e o conhecimento sobre a história e a cultura afro-brasileira e africana devem estar integrados no projeto político-pedagógico das escolas das crianças pequenas, pois são partes constitutivas da formação.
Nossa quarta recomendação geral se dirige tanto às escolas como aos órgãos do executivo em suas três instâncias. A mudança no padrão das relações étnico-raciais e a introdução do estudo da história e da cultura afrobrasileira e africana necessariamente implica em abordagens interdisciplinares e intersetoriais, envolvendo trabalho coletivo entre pares e entre os diferentes atores da comunidade escolar. Assim, o princípio da gestão democrática deve nortear todo o trabalho em torno da implementação da Lei no 10.639/2003, apoiado na possibilidade do encontro dos diferentes atores da comunidade escolar e da relação desta com os coletivos nas Secretarias de Educação.
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A cultura dominante brasileira foi, com
relação à questão racial, sempre a cultura
do tornar claro o escuro, do embranquecer.
Wilma de Nazaré Baía Coelho.
(A cor ausente: um estudo sobre a presença
do negro na formação de professores
– Pará 1970-1989. Belo Horizonte/
Belém: Mazza Edições/Unama, 2006) | |
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Além dessas recomendações gerais mencionadas, temos muitas outras às instâncias e aos atores responsáveis pela implementação da lei, a começar pela escola. À escola recomendamos, em primeiro lugar, que valorize as relações, recursos humanos e insumos importantes já existentes. Nesse sentido, reconhecer e potencializar o rico repertório dos alunos é um passo fundamental a ser perseguido. Estes sujeitos trazem expectativas do que gostariam de aprender e dialogar, e responder as suas indagações é um excelente caminho para a implementação da lei.
É recomendável, também, que a escola dê visibilidade a professores bem como aos demais profissionais da educação que já abordam de alguma forma os conteúdos implicados na lei, e que reconheça o projeto político-pedagógico como eixo central de processos sustentáveis de construção coletiva. O projeto político-pedagógico deve ser o ponto de encontro e o pólo irradiador da implementação da lei no âmbito da escola. É importante lembrar que todos os profissionais da educação devem se sentir apropriados deste projeto coletivo, incluindo os demais funcionários das escolas que tendem a ser deixados de lado em tais processos.
Esse sentido de construção e de debate coletivo inclui pais, mães e responsáveis de alunos e alunas, os quais a consulta encontrou muito distantes do cotidiano escolar. O sentido transformador e irradiador da escola pressupõe uma relação de troca com seu entorno, o que inclui a comunidade de maneira geral e pais, mães e responsáveis de maneira específica. Essa relação de troca e de comunicação fluida favorece que a escola comunique ocorrências de racismo envolvendo seus filhos e, junto com eles, possa buscar encaminhamentos, o que é também uma recomendação desta consulta. A consulta detectou que estes atores desconhecem a ocorrência de racismo na escola, o que nos indica que seus filhos não levam para casa essas informações, muito provavelmente pela dor e pelo sofrimento que causa reviver a ocorrência, ou pelo desencorajamento recebido na escola.
Dessa forma, a escola se obriga a ter papel proativo na comunicação de tais ocorrências de racismo e a debater questões como essas em reuniões com pais e mães. Por fim, recomendamos à escola que cuide, circule os materiais que já possui, sejam eles impressos, audiovisuais ou de outra natureza.
Ainda que os acervos devam e possam ser ampliados, a consulta constatou a existência de materiais disponíveis nas escolas, os quais poderiam ser mais explorados. É particularmente importante que estes materiais sejam apropriados pelos alunos, uma vez que constatamos um hiato entre os muitos materiais citados pelos profissionais e os efeitos do pouco uso citados pelos alunos.
Com relação às secretarias de Educação, sejam elas municipais ou estaduais, e ao Ministério da Educação, temos também, uma série de recomendações a fazer. Em primeiro lugar, com relação ao processo de formação para a implementação da Lei no 10.639/2003, é fundamental que este possa envolver todos os profissionais da educação e os demais funcionários que, muitas vezes, não se beneficiam desta abordagem, além de outros atores, como os técnicos da secretaria e do ministério, dos conselhos de educação, entre outros.
Além disso, é importante transversalizar a temática étnico-racial nos vários cursos de formação inicial e continuada promovidos pelo Poder Executivo, institucionalizando a questão de forma mais abrangente e efetiva. No que se refere ao conteúdo da formação, além de contemplar um repertório mais amplo sobre a África, é fundamental problematizar o discurso da igualdade referenciado no mito da democracia racial, bem como o silenciamento do racismo. A superação das práticas racistas presentes no cotidiano escolar depende, em grande medida, do entendimento do conceito de raça e de racismo, bem como o de outros conceitos, como preconceito e discriminação, o que permite a reflexão do ponto de vista sociopolítico sobre o assunto.
É importante reeducar quem educa para que a temática seja inserida de modo efetivo no cotidiano escolar e nos sistemas de ensino, propiciando melhorias na convivência e na trajetória escolar de estudantes brancos, negros, amarelos e indígenas, sem desconsiderar as outras diversidades como a de gênero e a de sexualidade. Além disso, é importante que as questões étnico-raciais sejam abordadas não apenas da perspectiva de ampliar o conhecimento dos participantes, mas também de uma perspectiva mais subjetiva, abordando valores e posturas.
Ou seja, o esforço dirigido de formação deve ser mais extenso, sustentado e amplo do que tem sido até o momento, traduzindo-se como um eixo das políticas de formação federal, estadual e municipal, e não se restringido a projetos e iniciativas isoladas.
As secretarias devem também estabelecer e explicitar critérios para a compra de materiais, sejam eles brinquedos, jogos, livros ou vídeos, preocupando-se com os conteúdos simbólicos e subjetivos deles ou, algumas vezes, bastante objetivos e explícitos. O Ministério, por sua vez, deve emitir pareceres a respeito dos diversos materiais, de forma a dar suporte ao processo de seleção e de compra nos âmbitos estaduais e municipais. Os materiais são suportes para as atividades escolares, de forma que, atendendo à LDB e à Lei no 10.639/2003, devem estar em consonância com os conhecimentos e conteúdos postulados como importantes para a comunidade escolar.
Também recomendamos aos Poderes Executivos que dêem visibilidade a iniciativas que desenhem caminhos para a reeducação das relações raciais e para a implementação da Lei no 10.639/2003 nas escolas. Tais iniciativas ajudam a ampliar referências e possibilidades de ação, explicitando metodologias significativas e reconhecendo sujeitos e unidades escolares que levam adiante tais iniciativas e inspiram outras, ao mesmo tempo em que se constatam possibilidades concretas da implementação da lei.
Por fim, aos Conselhos de Educação das três instâncias de governo, recomendamos uma postura mais proativa, assumindo o papel central que lhes cabe na implementação da lei. Nesse sentido, os Conselhos devem realizar um acompanhamento sistemático, avaliando o processo e emitindo recomendações. Além disso, devem regulamentar a lei nos estados e nos municípios, bem como aprovar diretrizes que favoreçam essa implementação e que dêem contornos específicos de acordo com o contexto local.
A tarefa é necessária e complexa. No entanto, a complexidade há de ser acolhida a fim de se repensar as unidades escolares em seus projetos político-pedagógicos, considerando os referenciais da temática étnico-racial, contemplando a história e a cultura afro-brasileiras e articulando os eixos já mencionados anteriormente: currículo, valores, relações e materiais didáticos.
A consulta aponta grandes desafios e, ao mesmo tempo, perspectivas animadoras. Se de um lado verificou-se a existência de limites para a implementação da Lei no 10.639/2003 no interior da escola, particularmente a persistência do mito da democracia racial, de outro, verificou-se a existência de motivação, capacidade criativa, curiosidade, desejo de aprender e de acolher a imensa tarefa da reeducação das relações étnico-raciais. Ao trabalho!
Veja também: Recomendações das escolas